sexta-feira, 29 de julho de 2016

Uma coisa ou outra



Tenho 90 anos. Ou 93. Uma coisa ou outra.
Quando temos cinco anos, sabemos até os meses de nossa idade. Mesmo por volta dos 20 sabemos quantos anos temos. Tenho 23, dizemos, ou talvez 27. Mas quando chegamos aos 30, algo estranho começa a acontecer. A princípio, é um mero sobressalto, um instante de hesitação. Quantos anos você tem? Ah, eu tenho – você começa confiante, mas depois pára. Ia dizer 33, mas não é essa a sua idade. Você está com 35 anos. E isso o incomoda, pois você fica imaginando se não é o início do fim. Claro que é, mas ainda faltam décadas pra você admitir isso.
Começamos a esquecer as palavras: elas estão na ponta da língua, mas, em vez de simplesmente saírem, permanecem ali. Subimos a escada para buscar alguma coisa, e quando chegamos lá em cima, não lembramos mais o que estávamos procurando. Chamamos um filho pelo nome de todos os outros e até pelo nome do cachorro antes de acertar. Às vezes esquecemos em que dia estamos. E, por fim, o ano.
Na verdade, não é que eu tenha esquecido. Simplesmente deixei de prestar atenção. Passamos o milênio, disso eu sei – tanto barulho por nada, todos aqueles jovens chiando de tanta preocupação e comprando comida enlatada porque alguém teve preguiça de deixar espaço para quatro dígitos em vez de dois -, mas isso pode ter sido no mês passado ou há três anos. O que importa? Que diferença há entre três semanas, três anos ou até mesmo três décadas de purê de ervilha, mingau e fraldas geriátricas?

Tenho 90 anos. Ou 93. Uma coisa ou outra.

(Água para elefantes – Sara Gruen)

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Contando um conto



Era uma vez um eremita que vivia muito além das montanhas de Igazaim, bem ao sul do deserto de Acaman. Fazia bem 30 anos que para lá se recolhera.
Algumas cabras lhe davam o leite diário e um palmo de terra daquele vale fértil lhe dava o pão. Junto à cabana esgueiravam-se algumas ramas de videira. Durante o ano todo, sob as folhas de palmeira de cobertura, abelhas vinham fazer suas colmeias.
“Há 30 bons anos que por aqui vivo! …”, suspirou o monge Porfiro. “Há 30 bons anos! …”.

E, sentado sobre uma pedra, o olhar perdido nas águas do regato que saltitavam entre os seixos, deteve-se neste pensamento por longas horas. “Há 30 bons anos e não me encontrei. Perdi-me para tudo e para todos, na esperança de me encontrar. Mas perdi-me irremediavelmente!”
Na manhã seguinte, antes de o sol nascer, de parco farnel aos ombros e semi-rotas sandálias aos pés, pôs-se a caminho das montanhas de Igazaim, após a reza pelos peregrinos. Ele sempre subia as montanhas, quando, sob forças estranhas, seu mundo interior ameaçava desabar. Ia visitar Abba Tebaíno, eremita mais provecto e mais sábio, pai de uma geração toda de homens do deserto. Vivia ele sob um grande penhasco, de onde se podia ver lá embaixo os trigais da aldeia de Icanaum.
“Abba, perdi-me para encontrar-me. Perdi-me, porém, irremediavelmente. Não sei quem sou, nem para que ou para quem sou. Perdi o melhor de mim mesmo, o meu próprio eu. Busquei a paz e a contemplação, mas luto com uma falange de fantasmas. Fiz tudo para merecer a paz. Olha meu corpo, retorcido com uma raiz, retalhado de tantos jejuns, cilícios e vigílias! … E aqui estou, roto e combalido, vencido pelo cansaço da procura.”

E dentro da noite, sob uma lua enorme, iluminando o perfil das montanhas, Abba Tebaíno, sentado à porta da gruta, ficou a escutar com ternura infinita as confidências do irmão Porfiro.
Depois, num destes intervalos onde as palavras somem e só fica a presença, um gatinho que já vivia há muitos anos com o Abba, veio se arrastando de mansinho até a seus pés descalços. Miou, lambeu-lhe a ponta reta do burel, acomodou-se e pôs-se, com grandes olhos de criança, a contemplar a lua que, como alma de justo, subia silenciosa aos céus.

E, depois de muito tempo, começou o Abba Tebaíno a falar com grande doçura:“Porfiro, meu filho querido, deves ser como o gato; ele nada busca para si mesmo, mas espera tudo de mim.
Toda a manhã aguarda ao meu lado um pedaço de côdea e um pouco de leite desta tigela secular. Depois, vem e passa o dia juntinho a mim, lambendo-me os pés machucados. Nada quer, nada busca, tudo espera. É disponibilidade. É entrega. Vive por viver, pura e simplesmente. Vive para o outro. É dom, é graça, é gratuidade. Aqui, junto a mim deitado, contempla inocente e ingênuo, arcaico como o ser, o milagre da lua que sobe, enorme e abençoada. Não se busca a si próprio, nem mesmo na vaidade íntima da auto-purificação ou na complacência da autorrealização. Ele se perdeu irremediavelmente, para mim e para a lua…É a condição de ele ser o que é e de encontrar-se.
E um silêncio profundo desceu sobre a boca do penhasco.
Na manhã seguinte, antes de o sol nascer, os dois eremitas cantaram os salmos das manhãs. Seus louvores ecoaram pelas montanhas e fizeram estremecer as fímbrias do universo. Depois, deram-se o ósculo da partida. 

O irmão Porfiro, de parco farnel à costas e semi-rotas sandálias aos pés, retornou ao seu vale, ao sul do deserto de Acaman. Entendeu que para encontrar-se devia perder-se na mais pura e singela gratuidade.
Contam os moradores da aldeia próxima que, muitos anos depois, numa profunda e quieta noite de lua cheia, eles viram no céu um grande clarão. Era o monge Porfiro que subia, junto com a lua, à imensidão infinita daquele céu delirantemente faiscado de estrelas. Agora não precisava mais perder-se porque se havia definitivamente encontrado.
(Waldemar Boff)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Muitas moradas



Eu caminho para dentro e para fora de muitos mundos.

Em minha mente, há muitas moradas.

Cada uma destas, criamos nós mesmos:

  • a morada da raiva,
  • a morada do desespero,
  • morada da autopiedade,
  • morada da indiferença,
  • morada do negativo,
  • morada do positivo,
  • morada da esperança,
  • morada da alegria,
  • morada da paz,
  • morada do entusiasmo,
  • morada da cooperação,
  • morada da doação.

Cada uma dessas moradas visitamos todos os dias. Podemos permanecer em cada uma delas o tempo que quisermos. Podemos abandonar cada uma dessas moradas mentais no momento que desejarmos. Nós criamos a casa, nós ficamos na casa, nós saímos da casa quando bem quisermos. Podemos criar novos aposentos, novas casas. Quando entramos nestas moradas elas tornam-se nosso mundo até que a deixemos por outra.

Grande Espírito, ninguém pode determinar a morada que devo escolher entrar. Ninguém tem o poder para isso, a não ser eu mesmo. Permita-me que hoje eu escolha sabiamente.
(
Oração Cherokee)

terça-feira, 26 de julho de 2016

A arte de ser avó/avô



Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha" e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!
Fazer malcriação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz "Vó", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.
(Rachel de Queiroz)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Luz da Semana



O simples fato de não estarmos onde gostaríamos em nossas vidas, não significa que não estaremos lá em breve. Significa simplesmente que ainda não estamos prontos. 
A verdade é que estamos exatamente onde devemos estar neste exato momento para aprender as lições que nos levarão até lá. Simplesmente confie nisso.

(Yehuda Berg)

sábado, 23 de julho de 2016

Coisas d'alma




A vida, esta vida que inapelavelmente, pétala a pétala, vai desfolhando o tempo, parece, nestes meus dias, ter parado no bem-me-quer…
(José Saramago)

Porque hoje é sábado



Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente
[o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais,
[se puder ser,

Ou até se não puder ser...
(...)
(Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Entre aspas




A vida é demasiado preciosa
para ser esbanjada
num mundo desencantado.

(Mia Couto)

Amizade



A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele, mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. 
Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma.

(Lya Luft)

terça-feira, 19 de julho de 2016

Pensamentos daqui e dali



Ao deitares, nunca deixe que o sono se aproxime dos teus olhos cansados enquanto não revisares com a tua consciência mais elevada todas as tuas ações do dia. 
Pergunta: Em que errei? Em que agi corretamente? Que dever deixei de cumprir?
Recrimina-te pelos teus erros, alegra-te pelos acertos.
(Versos de Ouro de Pitágoras)

Mais empatia, por favor



As pessoas se preocupam em ser simpáticas, mas pouco se esforçam para ser empáticas, e algumas talvez nem saibam direito o que o termo significa. Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de compreendê-lo emocionalmente. Vai muito além da identificação. Podemos até não sintonizar com alguém, mas nada impede que entendamos as razões pelas quais ele se comporta de determinado jeito, o que o faz sofrer, os direitos que ele tem.
Nada impede?
Foi força de expressão. O narcisismo, por exemplo, impede a empatia. A pessoa é tão auto-focada, que para ela só existem dois tipos de gente: os seus iguais e o resto, sendo que o resto não merece um segundo olhar. Narciso acha feio o que não é espelho.
Ele se retroalimenta de aplausos, elogios e concordâncias, e assim vai erguendo uma parede que o blinda contra qualquer sentimento que não lhe diga respeito. Se pisam no seu pé, reclama e exige que os holofotes se voltem para essa agressão gravíssima. Se pisarem no pé do outro, é porque o outro fez por merecer.
Afora o narcisismo, existe outro impedimento para a empatia: a ignorância. Pessoas que não circulam, não possuem amigos, não se informam, não leem, enfim, pessoas que não abrem seus horizontes tornam-se preconceituosas e mantêm-se na estreiteza da sua existência. Qualquer estranho que possua hábitos diferentes será criticado em vez de respeitado. Os ignorantes têm medo do desconhecido.
E afora o narcisismo e a ignorância, há o mau-caratismo daqueles que, mesmo tendo o dever de pensar no bem público, colocam seus próprios interesses acima do de todos, e aí os exemplos se empilham: políticos corruptos, empresários que só visam ao lucro sem respeitar a legislação, pessoas que “compram” vagas de emprego e de estudo que deveriam ser conquistadas através dos trâmites usuais, sem falar em atitudes prosaicas como furar fila, estacionar em vaga para deficientes, terminar namoros pelo Facebook, faltar compromissos sem avisar antes, enfim, aquelas “coisinhas” que se faz no automático sem pensar que há alguém do outro lado do balcão que irá se sentir prejudicado ou magoado.
É um assunto recorrente: precisamos de mais gentileza etc. e tal. Para muitos, puxar uma cadeira para a moça sentar ou juntar um pacote que alguém deixou cair, basta. Sim, somos todos gentis, mas colocar-se no lugar do outro vai muito além da polidez e é o que realmente pode melhorar o mundo em que vivemos. A cada pequeno gesto diário, a cada decisão que tomamos, estamos interferindo na vida alheia. Logo, sejamos mais empáticos do que simpáticos.
Ninguém espera que você e eu passemos a agir como heróis ou santos, apenas que tenhamos consciência de que só desenvolvendo a empatia é que se cria uma corrente de acertos e de responsabilidade – colocar-se no lugar do outro não é uma simples gentileza que se faz, é a solução para sairmos dessa barbárie disfarçada e sermos uma sociedade civilizada de fato.
(Martha Medeiros)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Luz da semana



O potencial para fazer o bem é o único potencial que temos. Quando o talento que possuímos está seguindo as ondas de um ego exaltado, ele consegue pouco. 
Ninguém apoia uma pessoa arrogante. 
Mas se o mesmo talento é usado de maneira correta, ele flui facilmente. O sinal de um vencedor é que ele não para por coisinhas pequenas, mas compreende a situação e vai em frente. 
O que temos de fazer é algo além da nossa capacidade. O que podemos ser é uma versão melhor de nós mesmos.

(Brahma Kumaris)

sábado, 16 de julho de 2016

Entre aspas




Ninguém é suficientemente perfeito que não possa aprender com o outro e ninguém é totalmente destituído de valores que não possa ensinar algo ao seu irmão.
(S. Francisco de Assis)

Porque hoje é sábado



Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

(Antonio Cicero)

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Coisas d'alma






Que  suas mãos estejam limpas, para criar bondade.
Que seus pés estejam  limpos, para sentir a pulsação da nossa Terra.
Que se possa limpar a língua, para falar gentilmente.
Que seus olhos sejam  limpos, para ver a luz da verdade.
Que o seu coração possa ser preenchido de compaixão para todos.
Deixe que seu espírito se eleve com os antepassados.
(oração nativa)

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Palavras



Qualquer um pode carregar seu fardo, embora pesado, até o anoitecer. Qualquer um pode fazer seu trabalho, embora árduo, por um dia. Qualquer um pode viver mansamente, pacientemente, amistosamente, até que o sol se ponha.
E isso é o que realmente a vida requer.
(Stevenson)

Contando um conto



No início do mundo, o Grande Criador plantou um jardim.
Inúmeras plantas formosas cresciam em cada um dos seus diferentes campos.
Havia jardins de florestas, completamente cobertos de musgo verde e campainhas ondulantes, que acenavam timidamente ao vento. Pequenos seres povoavam estes jardins, farejando e sussurrando a toda a hora.
Havia jardins de pradarias cheios de ervas oscilantes, que os animais percorriam com passadas graciosas.
Havia também jardins subaquáticos, para os seres do mar profundo. Tinham folhas roçagantes, arrastadas pelas correntes, e misteriosas flores de pétalas tremulas.
Os mais belos de todos eram os jardins de árvores. Eram tão altas que tocavam o céu. Nessas árvores, os pássaros todos faziam os seus ninhos. Os ramos, cheios de folhas, enchiam-se de trilos e chilreios, de gorjeios e assobios, de melodias trinadas, que caíam em sonora cascata para deleite do mundo.
O Grande Criador pediu aos homens que tomassem conta do mundo e construíssem para si próprios casas simples e seguras, num dos jardins de que gostassem.
Mas o tempo foi passando e as pessoas tornaram-se cada vez mais ambiciosas…
— Vamos construir CASAS MAIORES! — disseram.
— Há materiais de construção em abundância para usarmos como quisermos.
Em breve começaram a construir palácios.
Cada novo edifício era mais alto do que o anterior e os palácios eram feitos cada vez com mais magnificência.
As suas salas às centenas estavam cheias de todo o tipo de luxos… mas a ambição das pessoas não conhecia limites.
Os jardins do mundo foram caindo em ruínas, cada um deles imagem da mais desoladora devastação.
Todas as árvores tinham sido abatidas.
Os pássaros agitavam-se tristemente no chão frio, tentando, em desespero, construir novos ninhos.
As suas canções foram silenciadas.
Então, do alto do seu palácio, uma criança olhou para o mundo devastado e chorou.
— Desce à terra — sussurrou-lhe, por entre o vento, a voz do Criador. — Lá encontrarás uma semente, que deves semear num local onde possa crescer em segurança.
A correr, a criança desceu as escadas em caracol da torre do palácio.
Pousada na terra, estava uma semente castanha, enrugada, feia.
A criança pegou na semente com delicadeza.
— Onde poderei semeá-la em segurança? — perguntou-se.
Foi caminhando, caminhando, até que chegou a uma vala na qual uma lama escura corria lentamente e alguns juncos balançavam no vento frio.
— Coloca-a aqui, onde nunca ninguém vem! — parecia sussurrar o vento.
E foi ali que a menina enterrou a semente.
Devagar, em silêncio e completamente invisível, a semente começou a germinar.
Cresceu e fez-se uma árvore forte. Sob os seus ramos, outros jardins começaram a florescer. Em breve, as criaturas reuniram-se à sua volta.
A árvore cresceu mais alto do que todos os palácios. Os pássaros voavam por entre os seus ramos e aí construíam os ninhos.
Cresceu tanto, que chegou ao Paraíso. E quem assim o desejasse, poderia subir pelos seus ramos até ao Jardim do Paraíso do Grande Criador.
(Mary Joslin)

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Coisas d'alma


Rede é desconectável, laços são eternos



Um viciado em Facebook me confessou – não confessou, mas de fato gabou-se – que havia feito 500 amigos em um dia. Minha resposta foi: eu tenho 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Eu não consegui isso!
Então, provavelmente, quando ele diz ‘amigo’, e eu digo ‘amigo’, não queremos dizer a mesma coisa, são coisas diferentes. Quando eu era jovem, eu não tinha o conceito de redes, eu tinha o conceito de laços humanos, comunidades… esse tipo de coisa, mas não de redes.
Qual a diferença entre comunidade e rede?
A comunidade precede você. Você nasce em uma comunidade. De outro lado temos a rede, o que é uma rede? Ao contrário da comunidade, a rede é feita e mantida viva por duas atividades diferentes: conectar e desconectar.
Eu penso que a atratividade desse novo tipo de amizade, o tipo de amizade de Facebook, como eu a chamo, está exatamente aí: que é tão fácil de desconectar. É fácil conectar e fazer amigos, mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar.
Imagine que o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões offline, conexões reais, frente a frente, corpo a corpo, olho no olho. 
Assim, romper relações é sempre um evento muito traumático, você tem que encontrar desculpas, tem que se explicar, tem que mentir com frequência, e, mesmo assim, você não se sente seguro, porque seu parceiro diz que você não têm direitos, que você é sujo etc., é difícil.
Na internet é tão fácil, você só pressiona ‘desfazer amizade’ e pronto, em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500, e isso mina os laços humanos.
(Zymunt Bauman)