sábado, 31 de março de 2018

Porque hoje é sábado



Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.
(Wislawa Szymborska)

terça-feira, 27 de março de 2018

segunda-feira, 26 de março de 2018

Luz da semana



Mais do que as suas inspirações passageiras ou ideias brilhantes, são os seus hábitos mentais cotidianos que controlam sua vida.

(Yogananda)

domingo, 25 de março de 2018

Para aquecer o coração



Nos anos 70, Marina Abramovic viveu uma intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos viveram num furgão realizando todo tipo de performances.
Quando sentiram que a relação já não valia aos dois, decidiram percorrer a Grande Muralha da China; cada um começou a caminhar de um lado, para se encontrarem no meio, dar um último grande abraço um no outro, e nunca mais se ver.

23 anos depois, em 2010, quando Marina já era uma artista consagrada, o MoMa de Nova Iorque dedicou uma retrospectiva a sua obra. Nessa retrospectiva, Marina compartilhava um minuto de silêncio com cada estranho que sentasse a sua frente. Ulay chegou sem que ela soubesse...

sábado, 24 de março de 2018

Porque hoje é sábado



Eu pareço ter amado você em inúmeras formas, inúmeras vezes,
em vida após vida, idade após idade, sempre.
Meu coração enfeitiçado fez e refez o colar de canções
que você aceita como presente, usa à volta do pescoço em suas muitas formas,
em vida após vida, idade após idade, sempre.
Quando eu escuto crônicas antigas de amor, é sofrimento amadurecido,
é o conto ancestral de se estar junto ou separado.
Assim que eu encaro mais e mais fundo o passado,
no final você emerge
envolto na luz de uma estrela-cadente
cortando a escuridão do tempo:
Você se torna uma imagem do que é lembrado para sempre.
Eu e você temos flutuado aqui no córrego que flui da fonte,
no coração do tempo do amor de um pelo outro.
Nós temos brincado ao lado de milhões de amantes,
partilhado a mesma doce timidez do encontro,
as mesmas dolorosas lágrimas de despedida –
Amor antigo, mas em formas que se renovam e renovam, sempre.
Hoje ele está guardado à seus pés, ele achou o seu fim em você;
o amor de todos os dias dos homens, tanto passados quanto eternos:
Alegria universal, tristeza universal, vida universal,
As memórias de todos os amores
mesclando-se com esse nosso amor único –
E as canções de cada poeta, tanto passados quanto eternos.

("Amor sem Fim", Rabindranath Tagore)

quinta-feira, 22 de março de 2018

Contando um conto



Diálogo entre um buscador incansável e a vida:
Onde está minha verdadeira casa? Quando meu sofrimento vai acabar?, o buscador nostálgico pergunta.
Você já está em casa, responde a Vida, mesmo no meio da sua dor.
Mas eu não consigo ver isso agora!, responde o buscador.
Claro que você não pode, responde a Vida. Por isso desista de tentar vê-la no futuro. Simplesmente descanse nesta experiência do momento presente de ser incapaz de ver. Descubra que você está em casa mesmo nessa sensação presente de nostalgia, mesmo nessa frustração, mesmo no seu fracasso de escapar a este momento.
(Jeff Foster)

segunda-feira, 19 de março de 2018

Luz da semana



É preciso ter coragem para ter um ponto de vista e ainda estar extremamente interessado no ponto de vista dos outros.
Isto acontece na extensão em que você está preparado para mudar o seu ângulo de visão.
Significa dizer: eu sou flexível e agradeço por haver tantas formas de ver; eu tenho humildade para aprender; eu procuro estar com você no mesmo terreno, ao invés de me opor a você para manter um território preestabelecido.

(Mike George)

sábado, 17 de março de 2018

Porque hoje é sábado



Na realidade, tua alma e a minha são a mesma.
Aparecemos e desaparecemos um com o outro.
Este é o verdadeiro significado das nossas relações.
Entre nós, já não há nem tu, nem eu.
(Rumi)

sexta-feira, 16 de março de 2018

Entre aspas



Se você for tentar, tente de verdade. Caso contrário nem comece. Isso pode significar perder tudo. E talvez até sua cabeça. Isso pode significar não comer nada por três ou quatro dias. Isso pode significar congelar num banco de praça. Isso pode significar escárnio, isolamento. Isolamento é uma dádiva. Todo o resto é teste da sua resistência. De quanto você realmente quer fazer isso. E você vai fazer isso, enfrentando rejeições das piores espécies. E isso será melhor do que qualquer coisa que você já imaginou.
Se você for tentar, tente de verdade. Não há outro sentimento melhor que isso. Você estará sozinho com os deuses. E as noites vão arder em chamas. Você levará sua vida direto para a risada perfeita. Esta é a única briga boa que existe.
(Charles Bukowski)

terça-feira, 13 de março de 2018

Palavras



A cada dia, mesmo sem saber, sem querer, estamos nos criando. Ninguém pode nos dizer que será fácil. O fácil pode ser desinteressante, e merecemos ao menos alguma vez fazer, querer, ser, o interessante, o audacioso, apesar dessa incrível sensação de fragilidade que nos acompanha.

(Lya Luft)

sábado, 10 de março de 2018

Porque hoje é sábado



Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

(Paulo Leminski)

quinta-feira, 8 de março de 2018

Contando um conto



Era uma vez uma menina que, ao virar mulher, descobriu que casar era tudo o que a família esperava dela. É claro que seus pais ficavam felizes com suas boas notas na escola e com a carreira que ela havia escolhido, mas o que eles mais queriam saber, juntamente com os avós e as tias, é se ela havia conhecido alguém interessante na festa da noite anterior, e se este alguém viria a se tornar um namorado. 
A moça tinha sonhos de viajar, conhecer outros lugares, e a família dizia que ela conheceria quando partisse em lua de mel. A moça tinha vontade de dar mais intensidade à sua vida, e os familiares diziam que ela daria, assim que tivesse filhos. A moça pensou em seguir carreira política, depois pensou em ser voluntária num país africano, depois cogitou em fazer um curso de paraquedismo, mas sempre era desencorajada: "em namorar, que é bom, essa garota não pensa".
Pensava sim, e namorou o Mateus, o Luis, o Jairo, o Renato, o André, o Ruy e o Vinicius.

"Quando é que você vai escolher um pra vida inteira?" Ela respondia que não acreditava em contos de fada nem em final feliz, e a família dizia que ela iria mudar de ideia quando se apaixonasse. Ela não se apaixonou, mas conheceu um cara legal, que pensava parecido com ela, e os dois namoraram e depois, sob aplausos da plateia, casaram. Tiveram três filhos. Ela tinha um emprego, ele tinha um emprego. Eram populares, católicos e felizes. Passaram-se os anos e eles seguiam populares, católicos e felizes. Outros tantos anos e eles eram o que os outros haviam se acostumado a pensar deles: populares, católicos e felizes, mas eles mesmos já não sabiam direito o que eram. Os filhos cresciam e a moça passava os dias cada vez mais anestesiada pela rotina, até que um belo dia ela comeu uma maçã e foi pra cama dormir. Não acordou mais. Quer dizer, ela levantava, tomava banho e saía para o trabalho, mas parecia morta. As pessoas não a notavam. Ela tampouco percebia os outros. E assim caminhavam todos para o final desta história quando surgiu um homem não se sabe de onde e reparou que ela parecia morta, mas não estava. Achou-a linda e deu-lhe um beijo. Ela acordou e sua vida começou a ser contada sob um novo ponto de vista.
O cotidiano imutável nos envenena. É preciso um beijo para despertar para a vida. O verdadeiro príncipe é aquele que nos acorda e nos faz mudar o rumo da nossa história.

(Martha Medeiros)

quarta-feira, 7 de março de 2018

Coisas d'alma



Existe algo mais puro e grandioso do que as palavras ditas pela boca. 
O silêncio ilumina as nossas almas, sussurra aos nossos corações e os aproxima. O silêncio separa-nos de nós mesmos, leva-nos a planar no firmamento do espírito, e aproxima-nos do paraíso; faz-nos sentir que os corpos não são mais do que prisões e que este mundo é apenas um exílio.
(Khalil Gibran)

terça-feira, 6 de março de 2018

segunda-feira, 5 de março de 2018

Lua da semana



Prometa,
prometa neste dia,
prometa hoje,
enquanto o sol paira
bem no zênite,
prometa:
Mesmo que eles te derrubem
com uma montanha de ódio e violência;
mesmo que eles te pisoteiem e estripem,
lembre-se, irmão,
lembre-se:
o homem não é nosso inimigo.
A única coisa adequada a ti é compaixão -
invencível, ilimitada, incondicional.
O ódio jamais permitirá que você encare
a besta no homem.
Um dia, quando você encarar sozinho essa besta,
com sua coragem intacta, seus olhos bondosos,
imperturbáveis
(mesmo que ninguém os veja),
de seu sorriso irá desabrochar uma flor.
E aqueles que o amam
vão te enxergar
por dez mil mundos de nascimento e morte.
Sozinho de novo,
seguirei determinado,
sabendo que o amor se tornou eterno.
Na estrada longa e dura,
o sol e a lua
continuarão a brilhar.
(Thich Nhat Hanh)

sábado, 3 de março de 2018

Porque hoje é sábado



A vida passa,
leve
como a fumaça,
sem que possa
ao menos compreendê-la.
É um perfume sutil de magnólia,
cintilância indecisa de uma estrela,
um zumbido de vespa que esvoaça
em torno de uma flor
ou junto a um fruto.
É como um nome escrito sobre a areia
para viver o espaço de um minuto.
Aceitemo-la com indiferença,
como se olha a fumaça que se evola
ou se aspira o perfume de uma flor;
tal se escreve na areia um nome amado
porque se sente o amor.
Vivamo-la, pois, serenamente,
trazendo sempre a alma contente
e alegre o coração,
na certeza de que ela é transitória
e que sua glória
é como a glória
de uma bolha de sabão.
Não vale sentir tanta amargura
tanta tristeza 
e quanta desventura
a vida possa nos causar.
O que vale na vida indiferente
é o pouco que o acaso nos concede
nesse inclemente
desfiar das horas,
nessa fuga do tempo
que nos mata
lentamente...
imperceptivelmente...
imperceptivelmente...
(Alfredo de Sant'Anna
)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Contando um conto



Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam. 
Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. 
Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás. Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa , e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvessem. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente.

— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

(Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá.)
(Rubem Alves)