quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Contando um conto



Era um lindo jardim, com gramados em vários níveis e velhas arvores frondosas. A casa era grande, com cômodos espaçosos, arejada e bem dividida. As arvores abrigavam muitos passarinhos e esquilos, e vinham pássaros de todos os tamanhos à fonte, às vezes águias, mas principalmente corvos, pardais e barulhentos papagaios. A casa e o jardim eram isolados, ainda mais que estavam cercados por altos muros brancos. Era agradável do lado de dentro desses muros, e do outro lado havia o barulho da estrada da aldeia. A estrada passava pelos portões e a alguns metros dela situava-se a aldeia, nos arredores de uma grande cidade. A aldeia era suja, com valões abertos ao longo da estreita rua principal. As casas tinham teto de sapê, os degraus da entrada estavam enfeitados e crianças brincavam na rua. Alguns tecelões esticaram longos cordões de fios de cores alegres para fazer tecidos, e um grupo de crianças os observava trabalhar. Era uma cena alegre, animada, barulhenta e repleta de odores. Os aldeões tinham acabado de se lavar e usavam pouca roupa, pois o clima era quente. Ao cair da noite alguns deles ficaram bêbados e tornaram-se vulgares e grosseiros.
Era apenas um muro estreito que separava o lindo jardim da agitada aldeia. Rejeitar a feiura e agarrar-se à beleza é ser insensível. Cultivar o oposto sempre estreita a mente e tolhe o coração. A virtude não é um oposto; e se tiver um oposto, deixa de ser virtude. Perceber a beleza daquela aldeia é ser sensível ao jardim verde e florido. Queremos estar atento somente à beleza e nos desligamos daquilo que não é belo. Essa repressão simplesmente dá origem à insensibilidade, pois ela não realiza a apreciação da beleza. O bom não está no jardim, longe da aldeia, mas na sensibilidade que se encontra além de ambos. Rejeitar ou se identificar leva à imitação, que é ser insensível. A sensibilidade não é uma coisa para ser cuidadosamente nutrida pela mente, que só consegue dividir e dominar. Existe o bem e o mal; mas buscar um e evitar o outro não levar aquela sensibilidade que é essencial para a existência da realidade.
A realidade não é o oposto da ilusão, do falso, e se você tentar abordá-la como um oposto, ela jamais tomará forma.  A realidade só pode ser quando os opostos cessam. Condenar ou se identificar gera o conflito dos opostos, e conflito só produz mais conflito. Um fato abordado não-emocionalmente, sem rejeição ou justificação, não causa conflito. O fato em si mesmo não tem oposto; ele só tem um oposto quando existe uma atitude prazerosa ou defensiva. É essa atitude que constrói os muros da insensibilidade e destrói a ação. Se preferirmos permanecer no jardim, existirá uma resistência à aldeia; e onde há resistência  não pode haver ação, tanto no jardim quanto em relação à aldeia. Pode haver atividade, mas não ação. A atividade é baseada em uma ideia e a ação não o é. As ideias têm opostos e a movimentação entre os opostos é simples atividade, por mais prolongada ou modificada que seja. A atividade jamais pode ser libertadora. 
A atividade tem um passado e um futuro, mas a ação não tem. A ação está sempre no presente, e é portanto imediata. A reforma é atividade, não ação, e o que é reformado precisa de mais reforma. A reforma é inação, uma atividade nascida como um oposto. A ação é de momento para momento e, por estranho que pareça, ela não tem contradição inerente; mas a atividade, embora possa dar impressão de não ter intervalos, está cheia de contradições. A atividade da revolução é decifrada com contradições e, portanto, jamais pode libertar. Conflitos e escolhas jamais podem ser um fator libertador. Se há escolha, existe atividade e não ação; pois a escolha está baseada na ideia. A mente pode entregar-se a atividades, mas ela não pode agir. A ação surge de uma fonte bastante diferente.
A lua surgiu sobre a aldeia, criando sombras no jardim.
 (Krishnamurti)

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